Se eu não me tivesse cruzado com a senhora dos gatos nesse dia, e ficado à conversa com ela ao sol impiedoso das três da tarde, enquanto ela me relatava com minúcia as boas notícias que lhe deu o oncologista, provavelmente nem teria dado pela sede. Mas vamos por partes.
Não sei como se chama a senhora dos gatos nem me recordo como comecei a falar com ela, mas sei que há uns anos ela teve um cancro que parecia fulminante, e perante aquela ruína de vida, uma velhota que só tem uns gatos remelentos por companhia, mas que nem sequer pode tê-los ao pé de si porque vive numa pensão, pouco me custava ouvir as noticias do médico, da quimio, das sucessivas consultas. Ela sobreviveu, engordou, recuperou-se, e eu continuo a ouvir as notícias do oncologista, sempre as mesmas, e a achar que não me custa nada fazê-lo. Há na convivência humana um elemento fundamental, inculcado por uma moral judaico-cristã a que ninguém conseguiu escapar, que é o da culpa. Culpa do que não fizemos, do que não depende de nós, do que escapará para sempre à nossa acção. Culpa de ter saúde, de ter os dentes todos, de ter dinheiro para o restaurante, tanto faz.
O sol queimava-me a nuca, ela falava com todo o vagar, contava as noticias de há sete meses, e eu ia rodando a pouco e pouco, fazendo-a rodar comigo, cumprindo um cerimonial absurdo, que se poderia resumir à minha inabilidade para cortar uma conversa. A culpa, claro. E assim fiquei de frente para a sede de campanha do poeta épico, já pintada de azul, mas ainda de portas fechadas ao entusiasmo dos militantes e à avidez dos coleccionadores de bonés e canetas. Diabo de sítio para uma sede de campanha. Ou talvez não, talvez haja aqui uma mensagem oculta, talvez haja nesta escolha uma intenção.
É que esta minha rua tem muitos rostos, e esta parte é aquela a que corresponde um certo cosmopolitismo. À moda do Porto, é certo, mas algo cosmopolita. Lá para cima há uma zona que cheira a merda o dia todo, desde que o sol nasce até que se põe, o cheiro a merda cola-se, todo pegajoso, às paredes e às pedras sujas da calçada, e até parece que se cola ao suor do corpo, mas aqui em baixo é a zona dos escritórios, dos serviços, dos seguros, das análises clínicas.
Aqui cabe a cozinha de fusão do chefe espanhol que abriu há pouco o estaminé arejado e modernaço, e cabem as bebedeiras do Cardoso, que vem pôr o cão a fazer xixi e depois não atina com a chave na fechadura da porta de casa. Cabem os chineses e os banglas, cabe aquele repórter do jornal, que tem olhos de cão triste e anda pela rua como quem deambula por um mundo interior carregado de sombras.
Cabe o Chico que passa droga e cabem os meninos fardados do curso de hotelaria, orgulhosos da saia travada e da gravata, e que se apalpam à nossa frente nos semáforos, porque toda a rua é um preâmbulo. Cabem os travestis, mas só pela noite, quando saem à rua com longas pernas que se cruzam a cada passo, como quem caminha sobre andas, e deixam atrás de si um espesso perfume almíscarado. Cabe a mulher dos gatos, que acha que sobreviveu porque Deus quer que ela continue a alimentar os gatos vadios e ela assim fará enquanto Ele lhe der vida e forças para tal. A culpa, claro.
E é para aqui que virá a sede de campanha do poeta épico, que algum dia, talvez quando o Verão tiver passado e o cheiro a merda tiver ficado enterrado lá em cima, há-de assomar-se à varanda do primeiro andar e erguer a voz tonitruante sobre a rua. E que dirá ele, que dirá?
Que canta ao vento que passa a opeia de uma lenda já conhecida.
porra! é epopeia…
Belo texto Carla. Todavia, o cheiro a merda não é só lá para a zona de cima.Também cheira a merda nos escritórios,nos seguros,nas análises clínicas. Um cheiro a merda que passa transversalmente pela droga, pelos travestis, pela mulher dos gatos, por toda uma pobreza política e cultural que caricaturiza a sociedade – e até nos enternece -, em vez de de lhe dar o respeito, a nobreza e a dignidade de uma sociedade saudável e culta.
Se falamos metaforicamente, tens toda a razão, o cheiro a merda estende-se. Mas não era uma figura de estilo. Há um pedaço da rua do Bonjardim que tresanda a merda, não sei de onde vem o cheiro mas nos dias de calor é insuportável. Coitada da minha rua, de Gonçalo Cristóvão para cima está uma desgraça.
sim…
e depois há pessoas a quem ninguém fala que se agarram a nós quase como a uma boia.
aconteceu-me há menos de uma hora no café, uma senhora que aproveitou um mal entendido para “estender o lençol” da sua vida e das nossas vidas…
pois é, o mal dos nossos dias, a solidão